Nota Técnica do governo federal que restringe entrada de imigrantes no país causa temor entre defensores dos direitos humanos.
Cátedras Sérgio Vieira de Mello pelo país escreveram carta aberta destacando preocupação com as modificações implementadas pela Nota
Na última segunda-feira (26), entraram em vigor novas restrições para a chegada de imigrantes sem visto de entrada no Brasil. Segundo as novas regras, implementadas por meio da Nota Técnica nº18/2024 do Ministério da Justiça e Segurança Pública, passageiros sem autorização não poderão embarcar e serão obrigados a retornar ao país de origem ou seguir para o destino indicado na passagem. De acordo com o Ministério, a medida visa combater o tráfico de pessoas.
Essas mudanças ocorrem após alerta de que o Brasil estaria sendo usado como rota de organizações criminosas para o tráfico de pessoas. Ao mesmo tempo, centenas de imigrantes estão aguardando por semanas nos aeroportos para terem seus pedidos de refúgio processados pela Polícia Federal.
Segundo dados da Polícia Federal, somente no primeiro semestre deste ano, o Aeroporto de Guarulhos recebeu 5.428 solicitações de refúgio. Atualmente, quatro salas da área do embarque chegaram a receber até 600 pessoas de uma vez, aguardando a fila para obtenção do visto de refúgio, em condições mínimas de higiene e conforto, enfrentando até mesmo dificuldades para se alimentarem. No começo de agosto, um imigrante de Gana morreu enquanto aguardava o processamento de refúgio na área reservada do aeroporto.
A Defensoria Pública da União (DPU), denunciou em relatório na semana passada que “há reiteradas situações de violação de direitos humanos” contra imigrantes retidos no Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo.
“O tempo de espera e as condições materiais são inadmissíveis e fogem de qualquer padrão de razoabilidade, expondo um número elevado de centenas de pessoas a condições degradantes, falta de alimentação adequada, falta de higiene e riscos à vida e saúde, especialmente com relação a crianças e gestantes”, destaca o relatório da DPU.
Em outro comunicado, a Defensoria recomendou, devido à demora para o processamento das solicitações de refúgio, a adoção do procedimento de admissão excepcional. O mecanismo permite que a pessoa seja admitida no país após ser identificada e, dentro de oito dias, completasse a solicitação de refúgio.
No entanto, na última segunda-feira (26), o Governo surpreendeu imigrantes, pessoas em solicitação de refúgio e defensores dos direitos humanos com a Nota Técnica que restringe ainda mais a chegada de imigrantes e, como consequência, a solicitação de refúgio no país. A medida causou preocupação entre os defensores dos direitos humanos e pode violar inclusive tratados internacionais.
Há um risco específico de infringir o princípio da não-devolução. De acordo com esse princípio, é proibido que pessoas sejam devolvidas aos seus países de origem onde suas vidas e suas integridades físicas estejam em risco. O país recebe inúmeros refugiados fugindo de países por conflitos étnicos, religiosos ou políticos, mulheres oriundas de regiões onde suas liberdades são restritas e pessoas LGBTQ+ fugindo de países onde suas vivências são criminalizadas. Essas vidas poderão estar em risco com a nova portaria.
Nesse sentido, professores e pesquisadores que fazem parte da equipe das Cátedras Sérgio Vieira de Mello pelo país escreveram carta aberta destacando a preocupação de que as modificações implementadas possam ferir os direitos das pessoas migrantes e refugiadas.
Confira abaixo a carta na íntegra:
Carta aberta das Universidades brasileiras que compõem a Cátedra Sérgio Vieira de Mello/ACNUR
Brasil, 28 de agosto de 2024.
Ao Comitê Nacional para os Refugiados (Conare),
É com grande preocupação que nós, professores e pesquisadores do tema do refúgio, recebemos as recentes notícias sobre as modificações implementadas pelo governo brasileiro nos procedimentos para solicitação de reconhecimento da condição de pessoa refugiada, aplicáveis aos indivíduos que ingressam no Brasil pelos aeroportos internacionais, conforme a Nota Técnica 18/2024/Gab-DEMIG/DEMIG/SENAJUS/MJ.
De acordo com o comunicado oficial da Secretaria Nacional de Justiça, a partir de 26 de agosto deste ano, pessoas que chegarem aos aeroportos brasileiros sem visto deverão seguir viagem para o destino final de suas passagens ou serão devolvidas ao local de origem do voo.
Reforçamos, conforme já argumentado pela Defensoria Pública da União em sua nota do dia 21 de agosto, a importância de um atendimento individualizado e da garantia de que todas as solicitações de reconhecimento da condição de pessoa refugiada sejam devidamente analisadas pelo CONARE. Para isso, é essencial o fortalecimento das estruturas de processamento e assistência emergencial, bem como a promoção de um amplo debate com todos os atores envolvidos. Nesse sentido, colocamo-nos à disposição do governo brasileiro para colaborar.
A medida em questão altera as regras de entrada no Brasil e coloca em risco a integridade do processo de proteção às pessoas refugiadas e demais situações de ajuda humanitária, tensionando o histórico progressista da Constituição Federal e da legislação pátria. A Nota Técnica governamental menciona a preocupação com o contrabando e tráfico de pessoas, o que consideramos legítimo e alinhado com os preceitos de proteção aos Direitos Humanos das normas vigentes. No entanto, destacamos que as ações para enfrentar esses crimes não devem basear-se na revitimização dos sujeitos em deslocamento, sendo imprescindível garantir proteção e assistência a quem de direito.
Ademais, gostaríamos de destacar o papel de liderança e referência que o Brasil tem desempenhado no campo do refúgio no cenário internacional, sendo reconhecido por sua legislação protetiva e ações vanguardistas para a integração dessas pessoas refugiadas, mesmo enquanto solicitantes. A medida em questão contradiz esse papel histórico que o país vem exercendo.
Diante do exposto, a Cátedra Sérgio Vieira de Mello manifesta sua solidariedade com as pessoas refugiadas e migrantes, as entidades da sociedade civil e demais órgãos que têm se mobilizado para solicitar um amplo debate sobre a situação. Reiteramos que estamos à disposição para contribuir com soluções viáveis que respeitem o Estatuto dos Refugiados.
Atenciosamente,
Cátedras Sérgio Vieira de Mello que subscrevem esta carta: UFJF; UEPB; UFPB; PUC-Rio; UNIFESP; UFES; UFBA; UFMG; UFSM; UFF; USP; UNILA; UEMS; UFGD; UFABC; UVV: UFPR; UEPA; UERJ; Unicamp; UFSCar; UFG; UPF; UnB; UFU; UNIFACS; Unisantos; Unisinos; e UFRR